Mapa da fome em 2014 (clique aqui para versão ampliada). As áreas em branco possuem menos de 5% da população subnutrida. (Fonte: FAO) |
O Brasil
conquistou em setembro um feito histórico, que repercutiu de forma
insatisfatória na grande mídia. Segundo relatório da
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, o País saiu
do chamado mapa da fome, após reduzir para 1,7% a parcela da população que
sofre com a falta de alimentos. Em 1990, esse percentual chegava a 15%. Vale
ressaltar que o direito à alimentação está garantido no artigo 25°da Declaração
Universal dos Direitos Humanos e, desde 2010, no artigo 6° da Constituição
Federal. O portal online da Carta Capital postou uma matéria que detalha as
políticas públicas que levaram a tal avanço, além de retratar o impacto dessa
mudança na vida das pessoas. (Marco Galindo)
A diarista Kelly Cristina
Caetano, de 44 anos, vive em um apertado barraco em Cidade Estrutural,
comunidade erguida no entorno de um lixão do Distrito Federal. Basta um carro
passar pela rua de terra batida para uma espessa nuvem de poeira vermelha recobrir
o casebre. As paredes de madeira compensada mostram-se incapazes de aplacar o
calor que castiga o Centro Oeste nesta época do ano. Tampouco protegem a
família dos ataques de ratazanas. “Meu filho chegou a ficar internado após
receber uma mordida. Fiquei desesperada, a mão dele inchou e não parava de
sangrar”, conta. Apesar das agruras, Kelly demonstra uma inabalável confiança
num futuro melhor. “Agora estamos bem melhor. Ao menos não falta comida em
casa”.
Franzina e com a pele
precocemente envelhecida, Kelly conhece bem a anatomia da fome. Deu a luz a 12
filhos, e buscou alimentá-los como pôde. “Muitas vezes, não tinha nem arroz ou
feijão. Passávamos dias comendo polenta de fubá. Quando faltava o leite das
crianças, batia chá com biscoito de maisena no liquidificador”, diz, sem
esconder o desconforto. Um de seus filhos morreu bebê, por não resistir a uma
infecção hospitalar. O mais novo, Augusto, de seis anos, nasceu com
encefalopatia, espécie de paralisia cerebral. Para cuidar do menino, ela teve
de recusar ofertas de emprego. A família depende do trabalho do marido, que faz
bicos de pedreiro. Renda fixa? Só os repasses de programas socais, como Bolsa
Família e DF Sem Miséria. “Sem isso, ainda estaríamos à base de fubá.”
A
diarista e sua família integram um contingente de 15,6 milhões de brasileiros
que superaram a subalimentação desde o início dos anos 2000. O feito permitiu
ao Brasil abandonar o vergonhoso mapa mundial da fome, revela o último
relatório sobre segurança alimentar da Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), divulgado na terça-feira
16. Hoje, apenas 1,7% da população não sabe se terá garantida a próxima
refeição. Ainda que isso represente 3,4 milhões de bocas famintas, o País é
apontado como uma referência mundial no combate à fome pela forte redução
verificada nas últimas décadas. Em 1990, 25 milhões de cidadãos estavam
subalimentados, 15% dos habitantes do País.
“O
Brasil sempre foi um país da geografia da fome, como nos alertava Josué de
Castro, desde a década de 1940. Mas fez um avanço extraordinário nos últimos
anos, talvez o melhor progresso do mundo, e conseguiu superar o problema”,
afirma Jorge Chediek, coordenador das Nações Unidas no País. “Para ter
segurança alimentar, o mais importante é garantir acesso aos alimentos. Os mais
pobres precisam de dinheiro para comprá-los, e os programas de transferência de
renda implantados na última década tiveram grande êxito nessa tarefa”, emenda
Alan Bojanic, representante da FAO no Brasil.
Nos
anos 1990, perto de 3,5 milhões de brasileiros deixaram de passar fome, uma
redução de 15,6%. O maior avanço verifica-se, porém, na década seguinte. Desde
2000, o Brasil retirou 15,6 milhões de cidadãos da subalimentação, um recuo de
82,1%. O indicador da FAO considera três dimensões. Primeiro, a disponibilidade
de alimentos para consumo humano em cada nação. Depois, o número de calorias
necessárias para cada indivíduo estar bem nutrido. O terceiro aspecto tem a ver
com o acesso à comida. Nesse ponto o País conseguiu o maior avanço.
“O
Brasil nunca teve problema para produzir alimentos. A produção brasileira dá
para alimentar meio mundo”, explica Daniel Balaban, diretor do Programa Mundial
de Alimentos. “O problema é que os mais pobres não tinham poder de
compra”. Por isso, a FAO destaca os gastos federais nos planos de
segurança alimentar, que totalizaram 78 bilhões de reais em 2013. Apenas o
Bolsa Família transferiu 25 bilhões de reais para 13,8 milhões de domicílios de
baixa renda no ano passado.
De
1990 a 2012, a parcela da população em extrema pobreza passou de 25,5% para
3,5%, registra o relatório. Desde 2011, ao menos 22 milhões de brasileiros
foram retirados da miséria. O recente avanço é atribuído a mudanças no desenho
do Bolsa Família, que permitiram a elevação dos valores pagos às famílias mais
pobres, de forma que todos os beneficiários do programa tenham renda per
capita superior
a 1,25 dólar por dia, linha usada pelo Banco Mundial para definir quem está em
situação de pobreza extrema. Ou seja, apenas os brasileiros que ainda não foram
incluídos no Bolsa Família permanecem miseráveis.
“O
desafio, agora, é universalizar a cobertura dos programas sociais”, diz
Balaban. De forma residual, a fome persiste no país em comunidades de difícil
acesso: indígenas, ribeirinhos, quilombolas. Além dos programas de
transferência de renda, o êxito brasileiro se deve a melhora de outros
indicadores, como a geração de empregos formais e a elevação do salário mínimo.
A FAO destaca ainda o sucesso do Programa de Aquisição de Alimentos da
Agricultura Familiar e do Programa Nacional de Alimentação Escolar, responsável
pela oferta de merendas a mais de 43 milhões de crianças e adolescentes. Este
último ponto é um dos principais responsáveis pela saída do Brasil do mapa da
fome.
“Sempre
usamos como base a Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE, que não contemplava
o enorme contingente daqueles que se alimentam fora de casa, na escola, no
trabalho, nos restaurantes populares”, diz Bojanic. “Neste ano, pudemos incluir
esta variável em todos os países monitorados pela FAO.”
Pela
nova metodologia, desde 2006 o Brasil tem menos de 5% da população
subalimentada, porcentual considerado residual pelas Nações Unidas. “Mesmo
países desenvolvidos, como os EUA e o Japão, têm seus bolsões de pobreza, onde
a fome persiste. Não estamos dizendo que não há mais famintos no Brasil, apenas
registramos que ele superou a fome estrutural”, diz a nutricionista
norte-americana Anne Kepple, consultora da FAO.
A
ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, reconhece que a mudança na
metodologia favoreceu o Brasil. Destaca, porém, que as aferições anteriores
desconsideravam um importante instrumento de acesso à comida. “Todos os dias,
as escolas públicas oferecem refeições a um contingente de estudantes do
tamanho da população argentina.”
Matriculado
na Escola Classe 2, em Cidade Estrutural, João Pedro, de 10 anos, filho da
diarista Kelly Caetano, recebe quatro refeições durante o período de estudo.
“Ele chega em casa sem fome nenhuma, às vezes nem quer jantar”, comenta a mãe.
“Além disso, passa o dia todo em segurança na escola”. A preocupação não é à
toa. Dos 12 filhos de Kelly, três morreram assassinados.
“Há
alguns anos, eu e meu marido estávamos desempregados. Faltava tudo dentro de
casa, e várias vezes deixei de comer para não faltar comida aos meus filhos”,
comenta Márcia Gomes de Oliveira, que tem duas filhas matriculadas na mesma
escola. No período de maior dificuldade, o casal trabalhou por dois meses no
lixão do bairro. “Passei muito mal, vomitava várias vezes. Quando fui ao posto
de saúde, descobri que estava grávida de minha quarta filha”. Com o auxílio de
programas sociais, a família conseguiu progredir. Hoje, Márcia trabalha em uma
lanchonete e o marido é açougueiro. “Felizmente, não sabemos mais o que é fome
há uns bons anos”.
Um
recente estudo liderado por Patrícia Jaime Constante, coordenadora de
Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, avaliou o impacto do Bolsa
Família na redução da desnutrição aguda (déficit de peso) e da desnutrição
crônica (déficit de estatura) entre os beneficiários com menos de 5 anos. “As
equipes de saúde verificam a evolução do crescimento dessas crianças duas vezes
por ano”, diz Constante. “O grupo pesquisado corresponde à parcela mais pobre e
vulnerável do País.”
O
estudo revelou uma queda expressiva da desnutrição, mas desnuda uma prevalência
muito maior de casos nas regiões Norte e Nordeste, onde o déficit de estatura
ainda é identificado em 19,2% e 12,6% das crianças monitoradas,
respectivamente. Coautora do estudo, Leonor Maria Pacheco Santos,
professora do Departamento de Saúde Coletiva da UnB, destaca a necessidade de
reforçar políticas específicas para as regiões mais vulneráveis. “O desafio é
ainda maior no Norte, onde a miséria resiste em áreas de difícil acesso. Às
vezes, as expedições alcançar essa população na Amazônia demoram dias.”
Santos
ressalta, contudo, um grande avanço no Nordeste. “No início dos anos 1980, a
região passou por um prolongado período de seca, semelhante ao que observamos
nos últimos anos. Só que, agora, não houve crescimento da mortalidade infantil.
Só os animais morreram”, compara. “Naquela época, houve um verdadeiro genocídio
infantil. As famílias nem se davam ao trabalho de registrar as crianças no
cartório. Esperavam elas completarem dois anos de idade, aí sim diziam que o
filho ‘vingou’. Os bebês que não resistiam eram sepultados em registro algum.
Os familiares tocavam um sininho e diziam que mais um anjinho foi para o céu.”
A
ministra do Desenvolvimento Social reconhece a necessidade de criar políticas
específicas para alcançar as populações vulneráveis em áreas remotas. “Quando
criamos o Bolsa Família, pensamos num programa de abrangência nacional, que não
demorasse a trazer resultados no combate à fome e à miséria. Deu certo. Agora,
precisamos de ações mais focadas”.
Campello
destaca ainda o desafio de melhorar a assistência médica às gestantes e aos
recém-nascidos. “Decidimos aumentar o valor dos benefícios pagos às mulheres
durante a gestação, para que elas se alimentem melhor. Em contrapartida, elas precisam
iniciar o pré-natal mais cedo. Além disso, no Nordeste, decidimos aplicar
superdoses de vitamina A junto ao vacinar as crianças, além de oferecer
complementação de sulfato ferroso”.
Um
novo desafio, avalia a ministra, surgiu: melhorar a qualidade da nutrição do
povo. “Não há como ignorar o rápido crescimento da obesidade em todos os
segmentos sociais. Precisamos cuidar melhor das merendas escolares, reduzir os
teores de sal, gordura e açúcar dos alimentos industrializados, avançar da
regulamentação da publicidade de alimentos dirigidos às crianças”.
Atualmente,
metade da população adulta está com sobrepeso e 17,5% é obesa. A realidade
mudou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário será postado em breve.