O
texto abaixo, escrito por Eber Freitas, traz uma reflexão oportuna sobre o
perigo de prender-se a apenas uma história sobre uma pessoa, povo ou lugar. A
história única sobre qualquer coisa é, geralmente, a base dos preconceitos
sobre tal, e a existência de apenas uma história tem tudo a ver com poder. Quer
na literatura, jornalismo, cinema ou arte, mais histórias são contadas sobre os
mais poderosos, pois eles possuem os meios que lhes fazem ser ouvidos. Quem
dispõe de menos recursos não necessariamente conta menos histórias, mas não
alcança tantos ouvintes.
Dessa forma, a liberdade de expressão deixa de ser apenas a
garantia da possibilidade de dizer e ser como se quer, tomando, enquanto
direito humano, maiores proporções. Não basta que se possa expressar opiniões,
é preciso que as barreiras encontradas nas estruturas de poder - sociais,
econômicas, intelectuais - sejam superadas, a fim de que liberdade de expressão
signifique a liberdade de contar histórias, e ter quem as ouça. (Marcela Agra)
Chimamanda Adichie em palestra. Créditos: Reprodução/ Ted |
Chimamanda Adichie é uma escritora
nigeriana. Apesar de ter nascido em um país do qual só ouvimos falar de
miséria, Aids e Boko Haram, ela foi criada em um campus universitário, filha de
pai professor e mãe administradora. Teve uma educação de alto padrão e começou
cedo a ler e escrever romances. Mas, apesar de ser nigeriana, seus textos
frequentemente versavam sobre temáticas e elementos comuns a culturas europeias
-- como cerveja de gengibre, o sol da primavera após as rigorosas neves do
inverno, e diálogos sobre como o tempo era chuvoso.
É claro que nada disso retratava a
Nigéria, como ela mesma o diz. Suas principais fontes de leitura eram livros
infantis britânicos -- esses sim, repletos de fábulas de elfos e dragões
regadas a Ginger Beer. Adichie lia tanto esses livros que sonhava, um dia,
experimentar a tal cerveja de gengibre. Mesmo no Brasil é comum ver escritores
locais escreverem apaixonadamente romances ambientados em culturas nórdicas ou
saxãs e esquecerem que nas terras tupiniquins era Tupã, e não Thor, que fazia
rugir os trovões, e o tacape era brandido no lugar das claymore.
A nigeriana ficou surpresa quando, um
dia, conheceu a Nigéria de verdade, fora da redoma de livros europeus. Não
somente a da miséria, Aids e Boko Haram, mas aquela que se manifesta em forma
de arte -- sim, isso era possível. Quando Adichie tinha 8 anos, um jovem
chamado Fide foi contratado para trabalhar com a sua família. A única coisa que
ela sabia sobre o rapaz é que sua família era pobre e vivia na zona rural.
Quando não queria terminar sua refeição, sua mãe ralhava: "termine sua
comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não têm nada?". O
que poderia sair daquela família pobre?
"Um dia fomos à vila de Fide e sua
mãe nos mostrou um cesto com um padrão lindo feito de ráfia seca por seu irmão
[de Fide]", conta. "Eu fiquei atônita! Nunca havia pensado que alguém
em sua família pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo o que eu tinha ouvido
sobre eles era como eram pobres, assim se tornou impossível para mim vê-los
como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era minha história única sobre
eles". Adichie conta que, mais tarde, quando foi estudar nos Estados
Unidos, pôde perceber como era estar na pele de Fide -- não em relação à
condição socioeconômica, mas sobre as histórias de um só lado que são contadas
sobre a Nigéria e os nigerianos: frequentemente sobre a miséria, Aids ou Boko
Haram. Confira o relato completo em sua palestra no TED Talks abaixo.
Após assistir ao vídeo, percebi como é
fácil cair no engano de uma história única, porque a mesma coisa já havia
acontecido comigo muitas vezes, e ainda acontece se me descuidar. Os mais
vigilantes são apanhados nessa armadilha. O nome popular é preconceito, mas eu
prefiro o termo usado por Adichie: história única, ou história de um lado só.
Desde então tenho tentado me desafiar mais do que antes a ouvir o outro lado de
um discurso ou de uma história, mesmo que me pareça abjeto e repulsivo. Há algo
na história do outro que eu preciso apreender, e isso só irá acontecer quando
minhas conveniências ideológicas não atrapalharem. Mesmo que nada seja
aproveitado, apenas o ato de se dispor ao diálogo revela uma mudança radical de
caráter.
Pela natureza do meu trabalho, tenho que
ler comentários nas redes sociais. É algo que eu evitaria se pudesse, mas ossos
são ossos. E vejo o que uma história contada de um só lado prejudica a formação
cultural das pessoas, que passam a ficar viciadas naquilo e adotam uma postura
maniqueísta de que existe o bom e o mau, e um não deve admitir o outro. Existe
a direita e a esquerda, o liberalismo e o comunismo, são as forças que movem o
mundo desde o seu início, e um representa o bem, o outro o mal que deve ser
exterminado por quaisquer meios (não faço referência ao Yin e Yang porque não
há interesse no equilíbrio, e sim na aniquilação). Esses meios abarcam
cerceamento de direitos fundamentais, tortura e assassinato, cujos exemplos
foram fartos durante a ditadura (ou "revolução").
Se você admite dialogar com um dos lados,
é automaticamente vinculado com aquele e vilipendiado pelo outro. Para ser de
direita, não pode admitir um diálogo com quem é de esquerda. Cada qual deve
viver com suas histórias únicas, suas próprias versões inegociáveis da História
(com 'H' maiúsculo). Nas palavras de Adichie, "o que isso demonstra é como
nós somos impressionáveis e vulneráveis". Não basta ter um argumento, é
necessário ter o rótulo -- e, dependendo deste, tal argumento será ouvido ou
repudiado.
No final, o que sobra desse maniqueísmo
caricato é uma cusparada de acusações, barbaridades de todos os lados e o fim
do bom senso. É como Adichie falou a respeito da cobertura midiática no período
mais tenso dos debates sobre imigração nos EUA, prática frequentemente
associada aos mexicanos: eles eram o mal, o perverso, que traziam a
criminalidade e espoliavam o sistema público de saúde norte-americano. Ela
ficou surpresa quando andou por Guadalajara e descobriu que eles tinham uma
vida tão normal quanto a dela, e quanto sua visão sobre eles havia sido
contaminada com a história única contada pela mídia norte-americana -- que ela
não se ocupou em contestar.
Obviamente, outra questão vem a reboque:
o poder. "Como nossos mundos econômico e político, histórias também são
definidas. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são
contadas. Tudo realmente depende do poder", afirma. "Poder é a habilidade
de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história
definitiva daquela pessoa", considera a escritora. Obviamente, quem detém
mais poder, mais conta suas versões de suas próprias histórias -- o cinema é o
exemplo definitivo.
"É assim que se cria uma história
única: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e
será o que eles se tornarão", diz Adichie. "A história única cria
estereótipos, e o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas
que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.
A história única rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa
humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes ao invés
de como somos semelhantes", explica.
Mas por que deveríamos ouvir outras
histórias sobre os outros? Por que dialogar com aqueles que odiamos, dar
ouvidos às suas ideias anátemas? Porque fazendo isso, você vai perceber que
nunca há apenas uma história, vai reconhecer a dignidade do outro e vai
crescer. "Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas
histórias também podem ser usadas para capacitar e humanizar", relata a
escritora nigeriana. "Quando nós rejeitamos a história única, quando
percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós
reconquistamos um tipo de paraíso", conclui.
Eber Freitas é jornalista, e o texto acima foi
originalmente publicado no site Administradores.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário será postado em breve.