quarta-feira, 2 de julho de 2014

Por que devemos dialogar com quem odiamos

O texto abaixo, escrito por Eber Freitas, traz uma reflexão oportuna sobre o perigo de prender-se a apenas uma história sobre uma pessoa, povo ou lugar. A história única sobre qualquer coisa é, geralmente, a base dos preconceitos sobre tal, e a existência de apenas uma história tem tudo a ver com poder. Quer na literatura, jornalismo, cinema ou arte, mais histórias são contadas sobre os mais poderosos, pois eles possuem os meios que lhes fazem ser ouvidos. Quem dispõe de menos recursos não necessariamente conta menos histórias, mas não alcança tantos ouvintes.
Dessa forma, a liberdade de expressão deixa de ser apenas a garantia da possibilidade de dizer e ser como se quer, tomando, enquanto direito humano, maiores proporções. Não basta que se possa expressar opiniões, é preciso que as barreiras encontradas nas estruturas de poder - sociais, econômicas, intelectuais - sejam superadas, a fim de que liberdade de expressão signifique a liberdade de contar histórias, e ter quem as ouça. (Marcela Agra)


Chimamanda Adichie em palestra. Créditos: Reprodução/ Ted
Chimamanda Adichie é uma escritora nigeriana. Apesar de ter nascido em um país do qual só ouvimos falar de miséria, Aids e Boko Haram, ela foi criada em um campus universitário, filha de pai professor e mãe administradora. Teve uma educação de alto padrão e começou cedo a ler e escrever romances. Mas, apesar de ser nigeriana, seus textos frequentemente versavam sobre temáticas e elementos comuns a culturas europeias -- como cerveja de gengibre, o sol da primavera após as rigorosas neves do inverno, e diálogos sobre como o tempo era chuvoso.

É claro que nada disso retratava a Nigéria, como ela mesma o diz. Suas principais fontes de leitura eram livros infantis britânicos -- esses sim, repletos de fábulas de elfos e dragões regadas a Ginger Beer. Adichie lia tanto esses livros que sonhava, um dia, experimentar a tal cerveja de gengibre. Mesmo no Brasil é comum ver escritores locais escreverem apaixonadamente romances ambientados em culturas nórdicas ou saxãs e esquecerem que nas terras tupiniquins era Tupã, e não Thor, que fazia rugir os trovões, e o tacape era brandido no lugar das claymore.
A nigeriana ficou surpresa quando, um dia, conheceu a Nigéria de verdade, fora da redoma de livros europeus. Não somente a da miséria, Aids e Boko Haram, mas aquela que se manifesta em forma de arte -- sim, isso era possível. Quando Adichie tinha 8 anos, um jovem chamado Fide foi contratado para trabalhar com a sua família. A única coisa que ela sabia sobre o rapaz é que sua família era pobre e vivia na zona rural. Quando não queria terminar sua refeição, sua mãe ralhava: "termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não têm nada?". O que poderia sair daquela família pobre?
"Um dia fomos à vila de Fide e sua mãe nos mostrou um cesto com um padrão lindo feito de ráfia seca por seu irmão [de Fide]", conta. "Eu fiquei atônita! Nunca havia pensado que alguém em sua família pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo o que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres, assim se tornou impossível para mim vê-los como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era minha história única sobre eles". Adichie conta que, mais tarde, quando foi estudar nos Estados Unidos, pôde perceber como era estar na pele de Fide -- não em relação à condição socioeconômica, mas sobre as histórias de um só lado que são contadas sobre a Nigéria e os nigerianos: frequentemente sobre a miséria, Aids ou Boko Haram. Confira o relato completo em sua palestra no TED Talks abaixo.


Após assistir ao vídeo, percebi como é fácil cair no engano de uma história única, porque a mesma coisa já havia acontecido comigo muitas vezes, e ainda acontece se me descuidar. Os mais vigilantes são apanhados nessa armadilha. O nome popular é preconceito, mas eu prefiro o termo usado por Adichie: história única, ou história de um lado só. Desde então tenho tentado me desafiar mais do que antes a ouvir o outro lado de um discurso ou de uma história, mesmo que me pareça abjeto e repulsivo. Há algo na história do outro que eu preciso apreender, e isso só irá acontecer quando minhas conveniências ideológicas não atrapalharem. Mesmo que nada seja aproveitado, apenas o ato de se dispor ao diálogo revela uma mudança radical de caráter.
Pela natureza do meu trabalho, tenho que ler comentários nas redes sociais. É algo que eu evitaria se pudesse, mas ossos são ossos. E vejo o que uma história contada de um só lado prejudica a formação cultural das pessoas, que passam a ficar viciadas naquilo e adotam uma postura maniqueísta de que existe o bom e o mau, e um não deve admitir o outro. Existe a direita e a esquerda, o liberalismo e o comunismo, são as forças que movem o mundo desde o seu início, e um representa o bem, o outro o mal que deve ser exterminado por quaisquer meios (não faço referência ao Yin e Yang porque não há interesse no equilíbrio, e sim na aniquilação). Esses meios abarcam cerceamento de direitos fundamentais, tortura e assassinato, cujos exemplos foram fartos durante a ditadura (ou "revolução").
Se você admite dialogar com um dos lados, é automaticamente vinculado com aquele e vilipendiado pelo outro. Para ser de direita, não pode admitir um diálogo com quem é de esquerda. Cada qual deve viver com suas histórias únicas, suas próprias versões inegociáveis da História (com 'H' maiúsculo). Nas palavras de Adichie, "o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis". Não basta ter um argumento, é necessário ter o rótulo -- e, dependendo deste, tal argumento será ouvido ou repudiado.
No final, o que sobra desse maniqueísmo caricato é uma cusparada de acusações, barbaridades de todos os lados e o fim do bom senso. É como Adichie falou a respeito da cobertura midiática no período mais tenso dos debates sobre imigração nos EUA, prática frequentemente associada aos mexicanos: eles eram o mal, o perverso, que traziam a criminalidade e espoliavam o sistema público de saúde norte-americano. Ela ficou surpresa quando andou por Guadalajara e descobriu que eles tinham uma vida tão normal quanto a dela, e quanto sua visão sobre eles havia sido contaminada com a história única contada pela mídia norte-americana -- que ela não se ocupou em contestar.
Obviamente, outra questão vem a reboque: o poder. "Como nossos mundos econômico e político, histórias também são definidas. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas. Tudo realmente depende do poder", afirma. "Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa", considera a escritora. Obviamente, quem detém mais poder, mais conta suas versões de suas próprias histórias -- o cinema é o exemplo definitivo.
"É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão", diz Adichie. "A história única cria estereótipos, e o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história. A história única rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos semelhantes", explica.
Mas por que deveríamos ouvir outras histórias sobre os outros? Por que dialogar com aqueles que odiamos, dar ouvidos às suas ideias anátemas? Porque fazendo isso, você vai perceber que nunca há apenas uma história, vai reconhecer a dignidade do outro e vai crescer. "Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias também podem ser usadas para capacitar e humanizar", relata a escritora nigeriana. "Quando nós rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso", conclui.
Eber Freitas é jornalista, e o texto acima foi originalmente publicado no site Administradores.com.

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