A questão da dignidade como direito irrefutável, intransferível e
vitalício, e pertencente a todo ser humano simplesmente por ele ter nascido,
como já exposto neste blog, é um conceito ideal. Infelizmente, na prática,
muitas pessoas não compreendem a ideia de que os direitos humanos são para
todos, independente de circunstâncias.
Ultimamente, no Brasil, por exemplo, a sede por justiça pelas próprias
mãos tem causado a desvalorização da dignidade e dos direitos humanos como máxima
inegável. O artigo abaixo, escrito por Kiko Nogueira para o site Diário do
Centro do Mundo, trata do caso recente da mulher confundida com “feiticeira”
que foi linchada até a morte por vizinhos desrespeitosos da justiça, dos
direitos humanos e da democracia. (Marcela Agra)
O perfil Guarujá Alerta é uma aberração do Facebook
diretamente responsável pela tragédia acontecida com a dona de casa Fabiane
Maria de Jesus, de 33 anos.
Fabiane foi espancada por dezenas de moradores do bairro de
Morrinhos, numa cena dantesca. Foi justiçada depois que um boato gerado no
Guarujá Alerta dava conta de que uma mulher sequestrava crianças para rituais
de magia negra.
“Eles colocaram uma foto de uma pessoa parecida e todo
mundo achou que era ela. Quando ela voltou para o bairro, cercaram e começaram
as agressões”, disse seu marido, o porteiro Jaílson Alves das Neves.
A mulher que seria a “feiticeira”, Diane Silva Pinheiro,
teve de escrever para o GA esclarecendo que nunca sequestrou ninguém. Escapou
de não ser moída. Fabiane não teve a mesma sorte.
Mensagem enviada por Diane Silva Pinheiro à página Guarujá Alerta. Reprodução/Facebook
Os administradores da página — como sempre, anônimos — se defendem afirmando que a fotografia foi retirada a posteriori e que sofrem “perseguição política” por fazer críticas à administração da prefeita Maria Antonieta de Brito. Uma resposta veio em tom de bravata: “Não irão nos calar. A verdade dói em muitos, mas liberta”.
O tal Guarujá Alerta é uma excrescência, uma espécie de
programa do Datena do FB, um caldo de cultura feito de incitações à barbárie e
exposição irresponsável de pessoas, uma ode à justiça com as próprias mãos.
Juntamente com imagens de cãezinhos abandonados, buracos de rua e coisas
parecidas com “prestação de serviços”, há fotos fornecidas pela polícia de
“meliantes” capturados sob as mais diversas acusações.
Não é preciso dizer que ninguém deu a esse pessoal mandato
para nada, mas não é assim que funciona a cabeça de um justiceiro. A desculpa
canalha é a de sempre, vocalizada por Rachel Sheherazade em suas evocações
fascistas: se o Estado é omisso, nós não somos.
Joyce Carol Oates definiu assim a “mentalidade de
linchamento” das redes sociais. “Um bando de pessoas — de indivíduos — se
levanta e diz que os seus vizinhos são maus e perversos e devem ser abatidos. E
alguns acreditam imediatamente. Tipo, eles correm para matar judeus ou ciganos
ou o que for… Alguns deles não acreditam nisso e se contêm. Mas, no final das
contas, eles terão de se juntar aos seus vizinhos ou eles próprios serão
atacados”.
Como era de se esperar, eles são a favor da redução da
maioridade penal e admiradores da PM. Da pregação digital ao ódio para a violência
física foi apenas um passo.
Em 1893, o jornalista G. L. Godkin escreveu sobre os
linchamentos de negros nos EUA, que tinham plateias e ampla cobertura dos
jornais: “O homem é o único animal capaz de tirar prazer da tortura e morte de
membros de sua própria espécie. Arriscamo-nos a afirmar que parte das pessoas
num linchamento está lá como em uma briga de galo, para satisfação dos
instintos mais baixos e degradantes da humanidade”.
A única explicação para absurdos como o Guarujá Alerta
continuarem existindo é, aí sim, a falta do Estado e da Justiça.
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